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Dissemina UFF

O extermínio da população negra e periférica no dito “Combate à criminalidade”

Atualizado: 8 de jul. de 2020


Imagem: Vitor Vanes (Litogravura-série Olhos d'água, 2018)


Marcella Chagas e Dayanne Soares escreveram este texto para o Dissemina pouco antes de entrarmos em quarentena, no final de fevereiro. Ficou guardado, esperando um momento menos conturbado para ser publicado. Mas eis que as políticas de extermínio seguem fazendo  vítimas nos últimos meses. Corpos negros e jovens, como sempre. Os dados do texto seguem se reatualizando e, infelizmente, nada mudou. Não há pandemia que resista ao racismo diário e estrutural. Seguimos atentos e em luta.


A política de enfrentamento do Estado, que no ano passado, foi chamada de "gratificação faroeste", produziu uma quantidade considerável de mortes da população negra e pobre na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que até o presente momento, convivem com a falta de perspectiva e o grande número de jovens negros assassinados nos últimos anos. Para lutar contra esse tipo de violência, a internet vem sendo uma aliada de moradores e ativistas. Familiares e pessoas que são contra as intervenções violentas das forças de segurança nos territórios de periferias da cidade, denunciam as violações de direitos nas redes sociais através de campanhas, em sua maioria mulheres negras que tiveram seus filhos, irmãos, maridos, sobrinhos ou netos executados ou desaparecidos durante essas ocupações. Os altos índices de mortes sustentados pelo descaso com as investigações mostram que para combater a violência na cidade, geram hostilidade nas favelas.


Segundo a plataforma Fogo Cruzado foram registrados 2.335 confrontos próximos a unidades escolares, afetando a rotina de 1.941 de estudantes em 2019. A taxa de crianças baleadas aumentou em 80%, dentre elas, o caso da menina Ágatha Félix, que gerou grande repercussão. Aos oito anos, Ágatha foi baleada nas costas, dentro de uma Kombi, ao lado do avô, no Complexo do Alemão, enquanto voltava pra casa, em setembro de 2019. Ainda de acordo com o aplicativo, até outubro 2019 já haviam sido registradas 24 mortes de crianças e adolescentes em confrontos. Alguns casos sequer foram noticiados pela grande imprensa, mostrando como de fato as vidas de jovens negros são banalizadas no país. Até o mês de fevereiro deste ano, já foram contabilizadas nove crianças feridas por bala perdida em todo o Estado.





O caso da menina Ágatha, por ter se tornado um “caso de repercussão”, parece representar, para o sistema de justiça criminal e segurança pública, bem como para a mídia, algo “fora do lugar”, quando na verdade os índices de crianças atingidas e afetadas pela violência nas favelas seguem alarmantes. O professor do Departamento de Segurança Pública e Diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da UFF, Lenin Pires, afirma que “Ao mesmo tempo em que o Judiciário reconhece a responsabilidade dos policiais e do Estado, ele sanciona a ideia de que há algo que, se for bem feito, é válido. No caso, a execução daqueles que “devem” morrer”.


Poucos dias após ser eleito, em novembro de 2018, o governador Wilson Witzel deu aval para que a polícia continuasse a agir dessa forma. Em entrevista ao O Estado de São Paulo, o governador afirmou que a “polícia ia mirar na cabecinha... e fogo”. Fato é que, segundo o Observatório de Segurança do Rio de Janeiro, o número de mortes em ação policial aumentou 92% em relação a ao ano de 2018. O monitoramento contabilizou 1.296 operações com 387 mortes, cerca de 1 morte a cada 3 operações.


A tag #ACulpaÉDoWitzel foi usada nas redes sociais como forma de protesto a cada morte durante operações policiais Rio de Janeiro. O governador acabou com o incentivo a redução de mortes por PMs, bônus a policiais que matam menos, três dias após o assassinato da menina Ágatha, e no mesmo dia que defendeu sua política de enfrentamento na segurança pública. Suas declarações, como os procedimentos que vem tomando nos últimos meses apontam para a imprudência e o descaso com a vida, e a adoção de um sistema que parece incentivar os assassinatos ao invés da prisão, uma política que, muitas vezes, está a serviço do controle da favela, para objetivos envolvendo interesses religiosos, políticos, financeiros e morais.


“Nenhuma política pode ser factível, sem a participação dos setores policiais compromissados com a ordem democrática na garantia da lei e da ordem em prol das populações.” – explica Lenin.


Esse tipo de política afeta diretamente a violência nas favelas. E claro, não existe só uma violência, mas várias, como a falta de água e de saneamento básico, além das operações policiais e conflitos entre grupos armados, o preconceito, a ausência de serviços públicos e espaços de cultura e lazer causam danos à periferia. Essa política de guerra acaba ignorando a vida de milhares de famílias e interferindo em seu cotidiano. Com o número alto de mortes são capazes de produzir o aumento da insegurança e as doenças mentais e comportamentais que derivam dessa situação.



Lançada em maio de 2017, pela Revista Raça – periódico voltado para o público negro brasileiro – a campanha #MeuPrimeiroAbusoPolicial trouxe voz a uma série de relatos sobre abordagens violentas por parte da polícia, sobretudo contra jovens negros moradores das grandes periferias brasileiras. Criada após a prisão e condenação do Rafael Braga, jovem negro, pobre e catador de latinhas, que foi único condenado no contexto das manifestações no Brasil em 2013 – mesmo sem ter participação comprovada nas mesmas. A campanha durou três semanas e reuniu dezenas de depoimentos, em sua maioria de jovens negros e pobres, que reafirmam a presença do racismo estrutural na sociedade e demonstram o despreparo dos agentes públicos e o desrespeito aos direitos civis mais básicos do cidadão. Algumas vítimas comentaram sobre o efeito psicológico gerado nesse tipo de ação “a primeira batida a gente nunca esquece. Muitos dizem que duram apenas alguns minutos, mas quando se é o alvo parecem eternas e deixam marcas profundas que você sentirá o peso o resto da vida.” comentou um usuário. Veja abaixo alguns depoimentos:


“Mão na cabeça, mão na cabeça!”


Allan Marinho, 19 anos, sofreu sua primeira abordagem policial aos 14 anos. Havia acabado de anoitecer, era inverno e ele fazia o caminho de volta da escola quando uma viatura da polícia se aproximou. “Eles pararam o carro e com saíram gritando: Mão na cabeça, mão na cabeça, vagabundo! Um deles começou a me revistar, enquanto o outro manteve a arma apontada pra mim.” Conta o estudante, olhando fixamente para o chão. “Abriram minha mochila, jogaram meu material no chão, tiraram meu casaco e gritavam o tempo todo. Não lembro muito bem, sei que quando me liberaram eu corri muito. Cheguei a casa assustado e só fui entender o que tinha acontecido meses depois” completa.


No lugar errado, na hora errada


Usando a tag da campanha, Paulo Lencina, morador do Rio Grande do Sul, descreveu sua experiência numa rede social. Era início de tarde e, Paulo, então com nove anos, decidiu sair para experimentar sua bicicleta que havia ganhado de presente no Natal. O modelo era o sonho de toda criança e o avô comprou a “perder de vista”. Fazia calor e as ruas estavam praticamente vazias, ótima oportunidade para pedalar. Ao dobrar a esquina, avistou um camburão da polícia militar estacionado, com dois policiais escoltando um adolescente que sangrava muito. Ele ficou paralisado com a cena. “O que foi neguinho”? Quer entrar no laço tu também? Gritou um dos policiais vindo em minha direção com o cassetete em punho. Me pegou pelo braço e afirmou que eu havia roubado a bicicleta. Me sentou na traseira do camburão e gritou próximo ao meu rosto perguntando onde havia roubado a minha bicicleta. Não tive reação, não conseguia falar, chorar, nem gritar. “Só sabia que não tinha feito nada de errado e, que aquela bicicleta que agora estava jogada no asfalto era minha” relata Paulo, que só conseguiu esboçar reação quando os policiais ameaçaram fechar a porta traseira. Os agentes riram e fizeram ameaças, enquanto ele pedalava o mais rápido que conseguia para fugir dali. Para ele, seus únicos erros foram passar por ali naquela hora e ser negro.


Essa narrativa não é nova, tampouco incomum. Quem conhece ou mora em comunidade sabe que essas situações abusivas e humilhantes já fazem parte do cotidiano. Gritos, tapas e ameaças e até mesmo tiros são utilizados como forma de coação. No Brasil o uso da força é praticado contra a população mais pobre, perpassando o racismo estrutural que naturaliza a violência contra negros e seus descendentes. Em 2018, a polícia do estado do Rio de Janeiro foi considerada a mais violenta do país, sendo responsável por 1.534 mortes, um recorde histórico no número de vítimas que vem crescendo desde 2014. O levantamento foi feito nos municípios com população superior a 100 mil habitantes. Os números foram analisados por pesquisadores do IPEA e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com base nos dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS).


– “Eu tendo a pensar que a maior mudança que precisa acontecer é, principalmente, no Poder Judiciário. Este é o segmento onde se concentram os maiores privilégios e de onde se emanam representações decisivas que naturalizam a desigualdade. Salários extorsivos, concentração de poder interpretativo das leis, impunidade em diferenciados níveis, etc.” relata Lenin.


Segundo dados oficiais do Governo fluminense, 1.810 pessoas morreram em intervenções policiais no ano passado. Os policiais foram responsáveis por 11 de cada 100 mortes violentas em 2018. Um balanço de 2019 feito pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) mostra que as forças policiais são responsáveis pelas maioria das mortes no Estado. Jovens homens, negros, adolescentes pobres são os principais alvos da crescente violência da polícia brasileira, os números de vítimas de confrontos com as forças de segurança aumentam rapidamente.



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