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Dissemina UFF

A escrita como ferramenta simbólica de transformação para mulheres negras

Por Yago Ferreira



(Créditos: Divulgação)


A pandemia da Covid-19, além de provocar a mudança dos hábitos e rotinas de pessoas em todo o mundo, intensificou desigualdades já existentes, principalmente aquelas que representam uma herança simbólica (e alarmante) do colonialismo: segundo dados da pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), as mulheres negras são as mais afetadas pela insegurança e despreparo de instituições e políticas públicas. Tendo em vista tal realidade, é imprescindível a necessidade de olhar para as narrativas que foram — e devem continuar sendo — construídas por mulheres negras, a partir de suas múltiplas subjetividades, que utilizam a linguagem como ferramenta da construção de novas possibilidades.


“Sempre li muito. As minhas melhores lembranças são lendo”, afirma Josiane Alves dos Santos, graduanda de Letras pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e assistente administrativa. ”Infelizmente, a literatura de mulheres negras não me foi apresentada tão cedo, como eu gostaria”. Mais tarde, escritoras como Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina e Cidinha da Silva se tornaram fontes de inspiração para que a estudante entrasse em sua própria jornada dentro da escrita, principalmente na poesia.


Quarto de Despejo, escrito por Carolina Maria de Jesus e publicado em 1960, retrata a realidade de uma mulher negra e favelada no século XX. Esta é apenas uma das diversas obras brasileiras que representam uma possibilidade de expressão dessas mulheres, ao fazer uso de uma sensibilidade única que desconstrói os sentidos já naturalizados por ideologias dominantes.


Conceição Evaristo, por sua vez, explora sua ancestralidade de maneira crítica, com um tom de manifesto político que atua em sinergia com o caráter lírico. O seu próprio conceito de escrevivência (a manifestação da vivência na escrita) é explicitamente abordado no livro Olhos D’água, no qual a existência negra se mescla com as reais interseccionalidades desses corpos. “Para as mulheres negras, tendo em vista os atravessamentos sociais de raça e gênero, esses textos acabam por demonstrar uma sensibilidade mais aguçada às particularidades de dor, amor, resistência e identidade, vivências compartilhadas por essas mulheres. Mas, não se deve pensar que a poesia de mulheres negras seja só sobre isso”, alerta Josiane.


A organização de mulheres negras dentro do movimento feminista foi essencial para a compreensão das estruturas que movem e atravessam a sociedade, determinando assim a manifestação de agressões e as desigualdades que partem do sistema hegemônico. No Brasil, o Movimento de Mulheres Negras (MMN) surgiu na década de 1970 a partir da necessidade de uma abordagem conjunta das pautas de gênero e raça pelos movimentos sociais existentes até então.


É possível visualizar mudanças ainda pequenas, mas significativas. Após o período eleitoral no ano de 2020, mais de três mil mulheres negras foram eleitas para o cargo de vereadora em câmaras municipais com o apoio de mais de oito milhões de brasileiros (de acordo com o levantamento feito pela organização Mulheres Negras Decidem); mesmo assim, levando em conta o número de candidaturas negras femininas e quantas delas se elegeram em 2020, a representação política ainda carece de intensa mobilização.

(Créditos: Agência Brasil)


Sancionada em 2003, a Lei 10.639/03 institui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira no currículo escolar brasileiro. Entretanto, ainda é notável a ausência de uma atuação antirracista em metodologias pedagógicas nas instituições de ensino básico e fundamental. Portanto, para Jéssica Silva Pereira, doutoranda em História na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), “o campo plural da linguagem colaborou significativamente para que mulheres negras pudessem contar as suas histórias ao mundo, e principalmente a história do nosso povo, que por muito tempo foi invisibilizada pelos aparatos do Estado, em especial a escola”. Porém, a aplicação da lei ainda enfrenta desafios, principalmente diante do desmantelamento do setor educacional no país. Temos como exemplo a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), através do decreto 9.465, de 2 de janeiro de 2019 — início do mandato do presidente Jair Bolsonaro. Até mesmo no ensino superior, diversos intelectuais negros e negras (como as citadas anteriormente) sofrem um processo de silenciamento epistêmico nos currículos das universidades brasileiras.


A partir de inúmeras inquietações, intensificadas pelo cenário pandêmico que assola o mundo, as mulheres negras encontram na escrita a oportunidade da reconstrução da memória e elaboração de um futuro que amplifique suas existências e possibilidades. Josiane se prepara para o lançamento da obra Mais Desejo do que Gente, que fará uso de escrita e colagens: “quero, cada vez mais, estar com os meus textos de diversas maneiras”, ressalta.


Jéssica, por fim, atenta para a disseminação e produção da literatura produzida por escritoras negras: “o primeiro passo é torná-las acessíveis às pessoas, seja levando essas obras para comunidades, escolas e universidades.” Para a pesquisadora, tal processo pode ajudar crianças e jovens a se sentirem representados por personagens que compartilham dores e alegrias com eles. “Mulheres negras também são progresso, afeto, inteligência, e sobretudo, invenção e reinvenção. Afinal, escrevivemos”.



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