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Dissemina UFF

Do subúrbio para os festivais do Brasil: conheça Rossandra Leone; estudante e jovem cineasta

Natural do Rio de Janeiro, estudante de cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF) e realizadora audiovisual, Rossandra se dedica às produções que abordam a realidade e a cultura de pessoas negras.


Victória Pereira


O sonho de fazer cinema não foi uma paixão almejada desde a adolescência, na verdade, a jovem produtora, roteirista e diretora, Rossandra Leone, tinha outras expectativas em relação a sua profissão - queria estudar Ciências Sociais ou Educação Física. Como ela era tímida, logo percebeu que não conseguiria se expressar muito bem como professora, e também não estava disposta a ser instrutora de academia. As reviravoltas e as oportunidades que foram surgindo ao longo da vida de Rossandra, que hoje tem 25 anos, a levaram até cursos populares de cinema, a apresentaram ao cinema negro e, assim, proporcionaram novas percepções sobre a vida.


A adolescência é um período de transformação, é o momento de criar vínculos, se apaixonar, pensar em uma profissão, porém é também neste período que muitos jovens negros começam a entender como a vida pode ser solitária. Principalmente, se você for uma garota negra que não se encaixa nos padrões estabelecidos pela sociedade, como aconteceu com Rossandra: “eu sempre fui muito tímida, muito para dentro de mim. Eu tentava ser invisível”. O fato de não ter vivido certos momentos, que parecem estar ao alcance de qualquer adolescente, fez com que ela começasse a criar histórias.


“Eu nunca fui uma protagonista em nada por onde passava [...] muitas coisas não vivenciava, mas criava histórias para vivenciar aquilo” e “fui vendo que isso me interessava. Ainda no ensino médio, escrevi meu primeiro roteiro, que era a minha história de amizade com uma amiga. Sem estudar, nem nada, eu apenas fui pesquisando”, conta a jovem.


Um dos reflexos do racismo é a construção da imagem de pessoas negras, que pode estar presente em um contexto amplo de associação negativa e reprodução de estereótipo, ou quando negros e negras, muitas vezes sem perceber, não conseguem reconhecer a própria identidade. Rossandra comenta que quando criava as histórias para se inserir em algumas situações, ela não se enxergava como realmente era, "eu me imaginava muito embranquecida, ‘cabelão lisão’. Eu sabia que aquela personagem que estava fazendo era eu, mas não era eu. E até no sentido de que sou uma mulher lésbica, então, tem toda essa interssecionalidade", relembra.


Ao perceber o interesse em criar narrativas, a jovem foi atrás de se profissionalizar, mas descobriu que cinema é uma área elitizada e, portanto, não teria condições financeiras de se dedicar. O jeito foi procurar cursos gratuitos perto de Oswaldo Cruz, bairro onde cresceu e reside até hoje, e foi nesses espaços que encontrou o incentivo que precisava para colocar suas ideias na telona. As coincidências foram tantas, que logo no primeiro curso, Rossandra entrou direto no módulo de roteiro e conheceu o cineasta Clementino Júnior, que posteriormente se tornou o seu mentor no audiovisual e no cinema negro.


“A partir dessa aproximação com o Cinema Negro que, o Clementino me apresentou, deu um ‘start’ na minha mente muito grande, até para eu mesma me enxergar, entender o porque não era protagonista, porque não vivenciava certas coisas, porque no colégio ou na vida me chamavam disso e aquilo, porque não era escolhida para dar uns beijinhos, porque não era considerada bonita”, afirma a jovem cineasta.



Rossandra ressalta a importância de estudar cinema em um curso em uma região onde a maioria da população é negra e pobre e, consequentemente, o público que frequentava os aulas, “eu fui entendendo um monte de coisa que foi importante para mim como pessoa, e me levou a trilhar esse caminho no audiovisual”, comenta. Apesar da modéstia ao dizer que “ainda é um bebê” no audiovisual, a jovem já conseguiu desenvolver trabalhos significativos através de sua arte e criatividade.


Durante o seu segundo curso em 2016, Rossandra participou do filme ‘Real Card’, gravado em Madureira e, no mesmo ano, escreveu o roteiro de outro projeto para o “Festival 72 horas”, que inclusive recebeu menção honrosa pela organização do evento. Em 2017, foi produtora de ‘O Jogo’, primeiro filme profissional da carreira, que retrata o genocídio do povo negro nas favelas. Em 2018, co-escreveu e dirigiu o curta ‘Blackout’ que foi lançado em 2019. Recentemente está produzindo e dirigindo uma série de videoclipes.


Mesmo com experiência profissional, pessoas negras não estão imunes de sofrer ou presenciar o racismo durante a gravação de um filme. Rossandra conta do cuidado que a equipe de um filme precisou ter para filmar uma cena de um jovem negro correndo no centro do Rio. No dia foi necessário sinalizar por meio de cartazes que se tratava da gravação, “toda uma questão que uma pessoa branca não passaria”, afirma. E que, após a finalização da cena, o ator entrou correndo dentro de um Hostel, o que gerou preocupação na assistente de produção, “ela chegou dando esporro nele: ‘você está doido? Não era para você correr para dentro do hostel! Tinha dois policiais parados ali perto, eles ficaram te olhando e já iam ao seu encontro”, conta Rossandra sobre o medo causado.


Outro episódio marcante, ocorreu após a filmagem das primeiras cenas do filme Blackout, quando um dos atores foi parado por policiais em uma festa, horas depois de gravar uma cena em que o próprio “levava uma dura” de um agente. “O policial queria revistar ele, e o ator ficou parado um tempão”, Rossandra continua, “são coisas que a gente retrata em um filme e que acontecem nos bastidores. A gente sabe que acontece na vida, mas quando acontece nos bastidores do filme, que a gente está falando sobre isso, é doideira”.


Sobre construção de narrativas e a vontade de falar de negritude e questões raciais, a jovem considera importante colocar o protagonismo negro na frente e atrás das câmeras. Ela parte da premissa de que pessoas negras têm a devida atenção ao retratar um assunto, ao pensar em técnicas, como, por exemplo, iluminação para pele negra, e sabem como criar uma imagem sem estereótipos. E que é possível falar sobre tudo isso de diversas formas, seja apontando o “dedo na cara” ou de maneira mais subjetiva.


“Eu estou com um roteiro agora chamado ‘Ficção Suburbana’, se passa em Oswaldo Cruz, e fala sobre um casal de meninas negras. Em nenhum momento é verbalizado, mas está ali. Eu estou falando sobre um território em que a maioria da população é negra, estou falando de um casal negro. O filme é simplesmente sobre relações, sobre afetos, sobre amor. E mesmo quando você acha que não está falando, você está falando porque você é uma pessoa negra fazendo um filme”, afirma.



Todo esse cuidado é encontrado no curta-metragem Blackout, que Rossandra dirige e co-escreve em parceria com Rodrigo Gomes. A história afrofuturista se passa em 2048, tem como protagonista uma jovem negra e periférica chamada Luana, e mostra como a personagem subverte o sistema após encontrar informações que não são compartilhadas e debatidas pela população em geral. A ideia original do filme nasceu no segundo curso que Rossandra participou, em 2016, após a exibição do curta ‘O dia em que Dorival encarou a guarda’, que serviu de inspiração para o roteiro.


O filme chegou a ser filmado na Central Única das Favelas (CUFA) de Madureira, de forma bem simples e amadora. Havia apenas uma câmera emprestada, a verba de produção era para custear a passagem e a alimentação dos atores, e a equipe era formada basicamente pela Rossandra e o colega Pedro, os outros integrantes iam apenas quando podiam pois também estavam trabalhando, estudando ou envolvidos em outros projetos. Após a finalização, o curta foi exibido no curso.


De lá para cá, a história sofreu algumas alterações - o ano da história que era 2026, mudou para 2048; a personagem principal passou a ser uma mulher negra; foi acrescentado uma cena em uma festa e algumas falas passaram por mudanças. A narrativa foi criada pensando em um cenário futurista, que não fosse tão distante, mas que não fosse próximo da realidade atual. O filme traz alguns questionamentos: de onde vêm as ordens? Por que elas são feitas? E como isso se transforma em um ciclo vicioso?


Em 2018, Rossandra inscreveu o filme no edital Lab Curta, e conta que ficou surpresa quando foi contemplada com a bolsa, “não foi uma quantia grande de dinheiro, mas consegui pagar o transporte, a alimentação e custear os equipamentos”. Além desta contribuição, a colaboração de pessoas que, às vezes, nem faziam cinema, foi fundamental para o desenvolvimento do filme, assim como a equipe formada por 64 pessoas se tornou uma estratégia de divulgação. Ela conta que as pessoas publicavam nas redes sociais que estavam trabalhando no filme, e isso foi gerando uma expectativa que resultou no dia da pré-estreia no Cine Odeon. A jovem cineasta ficou espantada com o entusiasmo do público quando Blackout foi anunciado, “era o Odeon inteiro batendo palma, eu pensei: ‘meu Deus, eu vou desmaiar aqui mesmo'", brinca.



Em 2020, o filme participou de festivais de cinema do Brasil inteiro e recebeu dois prêmios - Melhor Curta Nacional, no Festival de Cinema Negro Zélia Amador de Deus e Melhor Direção, no Festival Cine Tamoio. O curta chegou a ser selecionado e foi exibido no Festival de Gramado. “Eu não esperava nada disso. Eu não imaginava! [...] Por que quando a gente faz as ‘paradas’ na 'guerrilha', não é nem no independente, é quando você não tem nada! Você não tem tempo, você não tem dinheiro”, afirma Rossandra. No mês de abril deste ano, o filme foi exibido pelo Centro de Estudos Brasileiros, da Universidade Estadual de San Diego, nos Estados Unidos. Rossandra foi convidada para falar sobre suas experiências em uma entrevista, e pediram para exibir o filme durante um mês.


Por conta da pré-estreia do filme, Rossandra, precisou superar a timidez pois sabia que iria representar o filme, “eu gosto muito de produzir, mas quando você está como diretora é diferente. O diretor é a referência da obra”. A jovem cineasta estava organizando a estreia oficial no Parque Madureira, “eu ainda não tive a oportunidade de ter uma sessão que mostrasse todos os meus filmes ou um filme meu, para as pessoas que moram onde cresci, que me conhecem desde criança”, comenta. A estreia precisou ser adiada por conta da pandemia de Covid-19.


Também por estar à frente da direção do filme, ela participou de todo o processo de inscrição do curta-metragem em festivais, e foi se surpreendendo cada vez que o filme era selecionado. Ela brinca que a inscrição para o Festival de Gramado foi feita despretensiosamente. “Eu vou ‘botar’ aqui para não me culpar depois, para não falar que eu não tentei”, brinca. Rossandra conta que, após a seleção, foi muito emocionante ver o reconhecimento de pessoas que estiveram junto com ela desde o início, principalmente, do cineasta Clementino Junior que também participou da edição do curta, “o Clementino é o meu paizão, e ele chegou e disse: ‘você está me levando para Gramado, eu nunca estive com um filme meu em Gramado”.


A oportunidade de ter um filme exibido no maior festival de cinema do Brasil foi uma experiência gratificante, e fez a jovem se reconectar com as pessoas que a viram crescer. “Eu sinto que hoje em dia, estou muito mais próxima das pessoas que conheço desde sempre. Quando era mais nova, eu não queria estar aqui, eu queria romper com as pessoas”. Ela afirma ainda que o reconhecimento que tem hoje dessas pessoas é tão importante quanto ser reconhecida por um festival, “é para além de festival, é uma coisa mais simbólica, mais significativa. De chegar um troféu na minha casa e eu postar no status do WhatsApp”, afirma.



Sobre inspirações, Rossandra diz que dificilmente consegue pensar em filmes ou pessoas, mesmo reconhecendo o pioneirismo de grandes nomes, “é claro que eu vou dizer Clementino Junior, Zózimo Bulbul porque foram pessoas que abriram portas, mas eu também sou muito fã de quem ‘faz corre’ agora”. A jovem critica ainda o fato da profissão ainda ser elitista e branca, e espera que futuramente tenha políticas públicas para financiar projetos, porque fazer “cinema na guerrilha" é legal só no discurso, mas na prática afeta a qualidade das produções, “que a gente não tenha que suar enquanto tem gente aí com grana de sobra” e “se a gente faz isso sem grana, imagina com grana”, afirma.



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